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terça-feira, 19 de março de 2024

 Sebastião Alba - "Albas" (2003)






Livro que reúne vários textos (cartas, poemas, pensamentos,…) dispersos (a maior parte do que escreveu não foi publicado em vida), escritos, muitos deles, creio, numa fase em que Sebastião Alba (1940 - 2000) já vivia como sem-abrigo. O livro inclui também manuscritos, fotografias e uma importante introdução sobre a vida e obra do autor.




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27/11/83

Meu Deus, eu não tenho medo de ti, mas das tuas criaturas, de mim. Como foste capaz disto: de nos assustar?



/138/

Em cada manhã travo uma luta, que eu sei perdida, com o demónio do álcool. Mas ele é cada vez mais do meu tamanho.
Mas ouve a voz do pai: “Se continuas assim, não duras 6 meses”; a do João, nosso primo: “qualquer dia alguém me diz que foste encontrado aqui numa valeta”. E estão mortos. Lembras-te do que dizia um grande escritor francês, Albert Camus? “A morte é um acontecimento que me dá razão”. Sabes o que o Camus queria significar com aquilo, ele que, já Prémio Nobel da Literatura, morreu num acidente de viação, contra uma árvore? Vão-se lixar.





SEBASTIÃO ALBA, Albas


(editora: quasi edições)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

 Henri Roorda -  "O Meu Suicídio" (1993)





Publicado originalmente em 1925, com o título “Mon Suicide”, esta obra do escritor suíço Henri Roorda (1870-1925) é uma reflexão, em larga medida uma crítica, da vida humana, da vida humana em sociedade, um olhar, irónico, mordaz, necessariamente dramático, sobre si próprio, um balanço de vida, uma explicação para a via suicida.

Mais recentemente, em 2020, saiu um nova edição pela editora Snob


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Vou meter uma bala no coração. Far-me-á de certeza doer menos que na cabeça.
Não temo o que me aconteça depois, porque tenho fé: sei que não vou comparecer diante do Juiz Supremo. Só na terra é que há «tribunais cómicos».
Não obstante, irei comover-me. Para estar mais à vontade, vou beber uma meia garrafa de Porto velho.
Se calhar vou falhar. Se as leis fossem feitas por homens caridosos, facilitava-se o suicídio aos que querem ir.




HENRI ROORDA, «O Meu Suicídio» (tradução de Rui Caeiro)




(editora: &etc)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

 Frayle - "Skin & Sorrow" (2022)








As flores crescem
e são arrancadas para murchar
Admiram-se numa jarra
num prazer inconsciente
de olhar até morrer



ÓSCAR MANUEL DE CARVALHO, Plenitude da morte ao contrário (do poema “Lu(z) em campos de Primavera)





terça-feira, 5 de dezembro de 2023

António Amaral Tavares - "Os Nomes dos Pássaros" (2017)





Vi fantásticas asas necrófagas a fazerem aqui o ninho.


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Nunca soube os nomes
dos pássaros ou são poucos
os que conheço.

A luz concreta dos nomes
torna os pássaros mais reais
encerra-os no muro da palavra.

Verdadeiramente retiro-me

entre o nome e a surdez
e chamo pássaro a todas
as criaturas voadoras

que a cru manuseio no tronco
e que só identifico como tal quando
já mortas ou moribundas

como sempre foi.



ANTÓNIO AMARAL TAVARES, Os Nomes Dos Pássaros




(editora: Língua Morta)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

 Maria do Sameiro Barroso - "Luna Visibilis"


"Luna Visibilis" é um texto (poema) da escritora portuguesa Maria do Sameiro Barroso (n. 1951). Faz parte do livro «As Vindimas da Noite», publicado em 2008.




LUNA VISIBILIS


Em todas as respostas, há anjos que debicam a morte
e estrelas que se espalham,
nas suas paisagens de coros invisíveis.
Na geleia do mar, na sua placenta obscura,
nos limos viscosos, há sítios onde os rios se banham,
sementes que deslizam, entre sons que nada dizem
e letras que se bifurcam,
abrigando a montanha, a casa, os candelabros,
o fogo flutuando, impaciente,
o rosto procurando o passado , o presente,
na miragem de cristais fosforescentes.

Nas dunas fendidas, lâmpadas de anil evocam o sopro,
a chama calcinada, a memória da neve.
Nos óvulos verdes, há vagens, alfarrobas,
prados infinitos, rebanhos que guardam o medo.

Em todas as respostas, há arcos leves, árvores
odorosas, sombras que respiram,
e dedos moldando os troncos, os rios e o coração,
aberto no fragor sincopado que lavra
a inquietude, o hermético lume, o ardor
que desvenda, nos seus interstícios salgados,

a espuma, a solidão, o vento roxo.




MARIA DO SAMEIRO BARROSO, As Vindimas da Noite

terça-feira, 19 de setembro de 2023

 Dino Campana - "Cantos Órficos" (2021)




Em Novembro de 2021 coloquei aqui o texto “Sonho de Prisão” do autor Dino Campana, texto que também faz parte deste livro «Cantos Órficos», originalmente publicado em 1914. Nessa altura ainda não me tinha chegado às mãos o livro completo. Esta edição (com tradução diferente do post “Sonho de Prisão”) é a única que conheço actualmente disponível (em português), e embora não tenha qualquer texto para lá do autor, inclui uma parte intitulada «Vários e Fragmentos» que, presumo, não terá entrado na edição original de 1914, o único livro publicado em vida pelo autor. É um excerto de um texto (intitulado “Viagem de eléctrico na América, e regresso”) dessa mesma parte do livro que aqui incluo.



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Ouço novamente o prelúdio desafinado das rudes cordas sob o arco de violino do eléctrico dominical. Os pequenos dados brancos sorriem sobre a costa, formam um círculo como uma dentadura, entre o fétido odor de alcatrão e de carvão misturado com o nauseante odor do infinito. Fumam os barcos a vapor nas docas desoladas. Domingo. Pelo porto cheio de carcaças as lentas fileiras humanas, formigas do enorme ossário. Enquanto entre as tenazes do cais estremece um rio que foge, taciturno cheio de soluços calados, foge veloz em direcção à eternidade do mar que se entretém e conspira lá em baixo para romper a linha do horizonte.



DINO CAMPANA, Cantos Órficos,  (tradução de Tomás Sottomayor)




(editora: Flâneur)

sexta-feira, 28 de julho de 2023


 XIII


Aquele passa inválido para sempre
como se tivesse sido lobotomizado por deus
do corredor C sai alguém para uma dor gigante
como o caixão de Robert Wadlow
daqui já ninguém vai para a terra dos Hiperbóreos
onde se vivia mais que um tubarão-da-gronelândia
dos predadores com espinhas que comem o juro
arrotar a Morte teimosa em Atahualpa
os golfinhos aterrorizados na baía infeliz em Taiji
este oceano é uma enorme garrafa de xarope de groselha
grunhidos de matadouro correm como bolas de snooker
cair num buraco com Endríaco no Santo Ofício
a esplanada é o garrote antes do fogo
Íblis segura a bandeja em forma de ampulheta
sai mais um torturado para o prato de Zeus
deixar o mamífero atolado no próprio excremento até ao fim
descemos o Vesúvio de mão dada com Plínio de mãos na cabeça
surpreendidos pela Morte às cotoveladas
os lóbulos às silvas pelo Stuka alarmista
Marx atingido por um Domovoi de ficar por casa
corpos como iogurte de pedaços
somos Dorian Gray a apodrecer em hipocondria
neste susto de Morte há Górgonas na fotografia Kirlian
um exército interminável de empedernidos
ficamos como os soldados em fila indiana para Shi Huangdi
atirados à mortandade num outro mundo como este
toma o veneno dos ratos Tchaikovsky
leva um tiro no córtex Métis
para a aula com leite mártir na mochila
a inocência sob um fundo negro de Caravaggio
foge com vontade de morrer
corre à frente dos robots Actéon
cai Gomorrense às balas de deus
para a Cruzada criança
para a Morte e a servidão
como potros selvagens retirados às mães.



Miguelsalgado, AQUERONTE

quarta-feira, 5 de julho de 2023


Sócrates:


A dose letal caiu aqui: chegou até aqui não sei como: veio até aqui não sei donde. Poderei ainda atirar este veneno para longe mesmo estando já em mim? Pergunto-me para que lado vou cair quando cair no último acto: cairei para lado algum? A quem estará destinada a infelicidade de lavar este morto detestado? Só sei é que nos últimos tempos só apanho as ondas sonoras dos presos. Questiono os deuses e não há respostas: ficam à distância, mais quietos que uma estátua de Fídias. Sou obrigado a desligar-me: uma vida sem a minha música é uma vida que não vale a pena ser vivida.



Miguelsalgado, AQUERONTE


segunda-feira, 12 de junho de 2023

 Before The Rain - "Frail" (2011)








“O Universo afigurava-se-me como uma espécie de grande gaiola, ou melhor, uma espécie de prisão enorme; o céu, o horizonte, pareciam-me muros para lá dos quais algo deveria haver, mas o quê? Estava no meio de um espaço imenso, todavia fechado. Ou melhor, parecia-me uma espécie de enorme barco do qual eu me encontrava e cujo céu era assim a modos que uma grande tampa. Éramos uma chusma de prisioneiros.”



EUGÈNE IONESCO, O Solitário (tradução de Luiza Neto Jorge)






quarta-feira, 24 de maio de 2023


 XII


Esticar os braços e não chegar
entorpecemos como os gigantes de Papini no jardim
onde a muralha de Camelot se desfaz ao suspiro
extinto no Cristo vermelho por Lovis Corinth
religioso no diário louco em Gogol
Penitência de Canossa que se impõe
pómulos sem algodão 
arroz como inquietas suricatas no Kalahari
o fundo do tacho raspado como os lares desta República Platónica
presos a uma Atlântida afundada
esta é a água que se agita sem sentido 
depressão nos charcos de suor em Arcádia
o amrita a escorregar das garras que Paracelso encravou
salta Hanuman para o clube dos poetas mortos
Miguel de Molinos nos membros agarrados à Morte inquieta
abraço venenoso para um Laocoonte que vê a cilada na existência
enquanto Goya esvai fuzilamentos pelas orelhas de Maio
onde o calor é mais intenso perto da luz que ilumina os mortos.




Miguelsalgado, AQUERONTE

quarta-feira, 10 de maio de 2023


Rosa Luxemburgo:


Sou com algemas: sacudo braços nos braços de empregados que magoam. Estou sem palco: apelar à paz é lançar a guerra. Ombros largos dissolvidos pela prisão umbrosa, clavículas com arte a dispersarem-se como migalhas sopradas: pessoas de partido igual afastam-se porque sim. Nunca mais a mão passará no pêlo do gato sossegado: para onde vou de mordaça? Querem o meu suor nas escadas como se não mancasse. Estou sem protesto: as pulsações a morrer às mãos de empregados que magoam. Sou para a necrópole: o que ainda podia ser já não será. Matamo-nos uns aos outros como anjos. A paz é sempre podre. Onde caio é feio: bonecas sem pernas e lodo poluído como manta.



Miguelsalgado, AQUERONTE


quarta-feira, 26 de abril de 2023

 Miguelsalgado - "AQUERONTE" (2023)




XI


Nelchael não diz nada
está mudo como Liv Ullmann em A máscara
a cara de Eurídice a pintar de preto o branco da passadeira
para o lugar onde Arcimboldo faz do nariz de Cleópatra uma áspide
cheiro a miocárdio com frio no alto dos Astecas
pelo verde luxuriante uma facada de Cortés na jugular
Syrinx a pedir boleia à ambulância mestiça
Apolo a esfolar vivo quem vive a música de pernas para o Elísio
desaparecemos com Pã por entre dentes chumbados e membros com gesso
com quadras de Augusto dos Anjos atiradas ao diafragma assombrado
a receita amorosa no Grande Alberto noutro aterro
Mussorgsky no robe resignado ao Hospital da Morte
noite claustrofóbica a acender Poveglia 
Müntzer desliza pelas mãos e pés nos pregos envelhecidos
luta presa em Valhala
Ragnarok nos leucócitos 
evaporação para lá do osso em Midgard
somos arqueólogos a cair pela maldição da múmia
o pó das contas bancárias esvaziadas num sorvo
como a garrafa de Poe
unhas na valeta onde despontam os crisântemos em Perséfone
auréolas e tudo pelo inferno adentro
abismos de porta larga como rectângulos de Rothko
a passear-se como um Urisco na cidade caída
poetas por Outono
a hora de Dumuzi reconhecer o mundo inferior.



(editora: artelogy)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Son Frère ("O Seu Irmão") -  Patrice Chéreau (2003)






    Conta-se que há uma raça de cavalos que, quando perseguidos, abrem por instinto a si próprios uma veia com os dentes, para poderem respirar mais livremente.
    Era também isso que eu queria: romper uma veia para alcançar a liberdade eterna!


GOETHE , Werther (tradução de João Teodoro Monteiro)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Marosa di Giorgio - "Passagens de um Memorial" (2022)





"Passagens de um Memorial" é uma antologia, uma escolha de textos que abarca a totalidade da obra poética da escritora uruguaia Marosa di Giorgio (1932-2004), uma obra que se move num universo muito próprio, muito marcado pela ligação à terra, à natureza e sua obscuridade.


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    Os cogumelos nascem em silêncio; alguns nascem em silêncio; outros, com um breve grito, um leve trovão. Uns são brancos, outros cor-de-rosa, este é cinzento e parece uma pomba, a estátua de uma pomba. Outros são doirados ou roxos. Cada um traz -- e isso é que é terrível -- a inicial do morto donde procede. Eu não me atrevo a devorá-los; essa carne levíssima é parente nossa.
    Porém, surge na tarde o comprador de cogumelos e começa a colheita. A minha mãe anui. Ele escolhe como uma águia. Este branco como açúcar, um cor-de-rosa, outro cinzento.
    A mãe não percebe que vende a própria raça.



MAROSA DI GIORGIO, Passagens de um Memorial  (tradução de Miguel Filipe Mochila)

 


(Editora: Cutelo Edições)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

 Ancestors - "Whispers", "First Light" e "The Warm Glow"


Os 3 títulos em cima são composições da banda estadunidense Ancestors. As primeiras duas fazem parte do álbum «In Dreams and Time» (2012). A outra do álbum «Suspended in Reflections» (2018) 





O que está pintado no ar é um negro esboço no chão. O esboço e a pintura equivalem-se: um sonho febril a óleo vivo e um sonho morto a carvão arrefecido… Tudo fumo e cinza, tudo ilusão; uma substância vaga e plástica desenrolando-se em fantasmagorias de paisagens.

TEIXEIRA DE PASCOAES O pobre tolo     







quarta-feira, 16 de novembro de 2022

"Colour Me Kubrick: A True...ish Story" ("Identidade Kubrick") - Brian W. Cook (2005)




A história surreal de um homem que no início da década de 90 se fazia passar pelo realizador Stanley Kubrick.



segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Colette Peignot - Eu não habitava a vida mas sim a morte


Colette Peignot (1903 - 1938) não publicou nada em vida. Em 1939 sai no entanto uma edição que inclui vários textos (poemas, cartas, pensamentos) da autora, uma obra à qual se deu o título de «O Sagrado». É desse livro que se extrai o texto para este blog.




… Eu não habitava a vida mas sim a morte.
Tão longe quanto me lembro
os cadáveres erguiam-se diante de mim:
«Bem podes desviar-te, esconder-te, negar…
Tu és da família e serás dos nossos esta noite.»
E discorriam, meigos, amáveis e sardónicos
ou talvez,
à imagem desse cristo, o eterno humilhado, o insano carrasco
estendiam-me os braços.
Do Ocidente ao Oriente
de país em país
de cidade em cidade
eu caminhava por entre as covas.
Cedo fiquei sem chão.
Fosse relvado ou calçada
eu flutuava
suspensa entre o céu e a terra
entre o tecto e o soalho.
Meus olhos doídos e revirados
apresentavam ao mundo seus lóbulos fibrosos
minhas mãos, ganchorras mutiladas
transportavam uma herança insana.
Cavalgava as nuvens
com ares de louca desgrenhada
ou de mendiga de amizade.
E sentindo-me um tanto monstra
já não distinguia os humanos
que entanto amava.
Viram-me aterrar
no céu de Diorama
onde congelada atá aos osso
petrificava lentamente
até me tornar
um perfeito ornamento.



COLETTE PEIGNOT, O Sagrado (tradução de André Tavares Marçal)


terça-feira, 6 de setembro de 2022

 Hilda Doolittle - a casinha


O texto que se segue, sem título, faz parte do livro «Notas sobre o pensamento e a visão», publicado originalmente em 1919 com o título «Notes on Thought and Vision». Hilda Doolittle (1886-1961) assinava com o pseudónimo H. D.






    As nossas mentes, todas as nossas mentes, são como casinhas enfadonhas, construídas mais ou menos da mesma forma – uma cidadezinha enfadonha com filas de vivendas separadas, e aqui e ali uma casa mais pretensiosa, afastada das outras; mas na sua essência, vistas à distância, aquela com as outras, são todas pardacentas, todas cinzentas.     
    Cada casinha confortável acoita uma alminha confortável – e uma parede ao fundo impede completamente qualquer comunicação com o mundo além.
    A maior preocupação do homem é aquecer a sua casinha e fortalecer a sua pequena parede.




HILDA DOOLITTLE, Notas sobre o pensamento e a visão (tradução de Leonor Castro Nunes)




terça-feira, 12 de julho de 2022

 

JOSÉ 


És sem graça. Trazes túnicas para não tirar ao deitar.

És sem graça. Os percevejos pousam livremente no peito do teu pé.

Na banca do talho reparas nas carnes mortas.

Repara também como as moscas só param demoradamente nos pedaços parados.

Não precisas de olhar para o lado. Não há nada a dar socorro à tua ereção.

Exalas monotoneísmo dentro do teu eu.

Já vi um Hematófago enorme a trepar a parede do teu quarto enquanto dormias.

Queres perder todo o sangue sem dares por isso?



Miguelsalgado, Escuro


quarta-feira, 29 de junho de 2022


MARIA


Um feto fura pela vagina peluda e a escorrer sangue. As pernas abertas estão inundadas de suor. Maria grita e chora. Tem cuspe no queixo. Força com os dentes. É agarrada. O sítio cheira mal.



Miguelsalgado, Escuro

terça-feira, 24 de maio de 2022

 "Los Santos Inocentes" - Mario Camus (1984)




Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar



DANIEL FARIA , Homens que são como lugares mal situados (excerto de um texto sem título)



terça-feira, 26 de abril de 2022

Vladimir Vlasov - "Improvisação para violoncelo e orquestra"




O compositor:

Vladimir Vlasov (1903-1986), compositor russo, estudou violino no conservatório de Moscovo e foi também maestro, professor, etnomusicólogo e director artístico. Compôs maioritariamente música vocal.



"Improvisação para violoncelo e orquestra"


"Estava a passar cá fora com dois amigos, e o Sol começava a pôr-se – de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue – Parei, sentia-me exausto e apoiei-me a uma cerca – havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade – os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, de pé, a tremer de medo – e senti um grito infindável a atravessar a Natureza."


EDVARD MUNCH





terça-feira, 15 de março de 2022

 Joaquim Pessoa - "Fly" (1983)



Voo para um arco-íris engolido pela escuridão.


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     Depois do homem morrer a casa tornou-se amarela e maior porque tudo havia sido levado. Vazia, como um coelho sem tripas. O silêncio é agora de máscaras, sem olhos e sem água. Ouve-se o pó, outra lâmpada que no escuro se desfaz em lentidão opaca. O livro, o fogo, não existem mais. No linho da quietude o ar branco se interroga.
     A borboleta louca por lá anda em horas grandes de martírio esvoaçado, florescendo no sonho encoberto que a casa mastiga: é Fly quem tudo sabe e dá conta. Fly, que vestiu da sombra os mantos e bebeu da noite os duros copos da insónia.



JOAQUIM PESSOA, Fly




(editora: Litexa Portugal)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

 "Amour Fou" ("Amor Louco") - Jessica Hausner (2014)




Heinrich von Kleist e a sua relação suicida com Henriette Vogel. Nas palavras do próprio escritor:

"Morro pois não me resta mais nada na terra para aprender e conquistar."




terça-feira, 21 de dezembro de 2021

 Morgion - "Solinari" (1999)








Deus teve medo às trevas e gritou! Aquele grito, de tão intenso e doloroso, incendiou-se! Foi o primeiro raio de sol. O sol é o medo às trevas, um grito incandescente de terror! A aurora é apenas um gemido…



TEIXEIRA DE PASCOAES, O Pobre Tolo







quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Dino Campana -  "Sonho de Prisão"


Dino Campana (1885 -1932), escritor italiano, publicou um único livro em vida: «Canti Orfici» (1914), em português «Cantos Órficos». "Sonho de Prisão" é um dos textos que fazem parte dessa publicação.







SONHO DE PRISÃO


No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).





DINO CAMPANA, Canti Orfici (Tradução de Ritta Ciotta Neves)


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

 "Ellie Parker" - Scott Coffey (2005)







A desilusão ao virar destas esquinas absurdas.



terça-feira, 14 de setembro de 2021

 The Wounded - "Garland", "Grace, Murder, Divine" e "We pass our bridal days"


Os 3 títulos acima são composições da banda holandesa The Wounded.  As duas primeiras pertencem ao álbum «Monument» (2002) e a outra ao álbum «The Art of Grief» (2000).








aqui ninguém ignora 
que os lagos gelam a partir das margens 
e o homem a partir do coração, 

que a luz 
ascende do vazio 
e tudo o que nos resta mais não é 

que um sol sem crédito 
num céu desafectado, 

envolvem-nos as trevas 
os ossos, dir-se-ia 
que a própria morte 
nos serve aqui de pele, como a um morcego.




LUÍS MIGUEL NAVA, Vulcão (do poema "As Trevas")






sexta-feira, 9 de julho de 2021

"Lao Shi" ("Pedra Antiga") - Johnny Ma (2016)





A vida esmagada por uma teia burocrática desumana e inflexível.




sexta-feira, 18 de junho de 2021

 João Camilo - "Como o vento"


"Como o vento" é um texto do escritor português João Camilo (n. 1943).  Pertence ao livro «A mais nobre das artes», publicado em 1991.





COMO O VENTO


Um ano novo. Tocaram os sinos
da minha aldeia à meia-noite?
O eco de bronze atingiu as margens da ribeira,
dança ainda sobre a sombra dos pinhais.
Um dia a torre da igreja cairá, o sino também.
E estaremos todos mortos, ninguém saberá que existimos.
Passámos como o vento que ninguém vê, nem sequer
deixámos pegadas no caminho que leva ao cemitério.




JOÃO CAMILO, A mais nobre das artes


sexta-feira, 7 de maio de 2021

"Talaye Sorkh" ("Sangue e Ouro") - Jafar Panahi (2003)









PRISÃO

Presos à terra
ao nascimento
à solidão dos braços colados ao corpo
resta-nos a morte por companheira
o medo de possuí-la violentá-la
a coragem de 
ocultá-la
dentro de um poço




CASIMIRO DE BRITO, Jardins de guerra

terça-feira, 30 de março de 2021


 VIDRO DUPLO


Perseguiu um homem durante 5 minutos e ao fim desse tempo, sem dizer nada, espetou uma faca no nó da gravata do homem. Na faca do crime só havia sumo de laranja.

**

Antes de ir para a cama punha a cara mais séria que tinha e dizia: vou de viagem e não sei se regresso.

**

Disse-lhe Bom dia. Ela respondeu Bom dia. Entraram os dois no elevador. Primeiro ela. Depois ele. Ele fixou os olhos numa parte da porta do elevador. Ela fixou os olhos nou-tra parte da porta do elevador. Ambos olhavam o movimento aparente das portas e pa-redes enquanto esperavam a sua vez de sair.

**

O homem que foi salvo ontem do mar morreu hoje. Afogou-se na banheira.

**

Estava sentado sozinho à mesa da esplanada. Um estranho aproximou-se dele e pergun-tou: posso-me sentar? Ele ficou surpreso e disse que sim embora desejasse ter dito que não. O estranho sacou de um baralho de cartas e disse: vamos jogar? 

**

Era alguém que só conseguia cagar se fosse à frente dos outros. Era alguém muito especial.

**

Foi o vento que fez bater a porta?

**

Estava de costas. Alguém gritou-lhe CUIDADO. Virou-se e ficou estático.

**

Valem muito mais dois pássaros a voar do que um na mão.

**

Foi atacado por parentes e amigos. Se sobreviver vai ficar dependente de parentes e amigos.

**

Terão sido 29, e não 30, as facadas que o levaram à morte. A facada 30 foi um erro de observação.



Miguelsalgado, vidro duplo





Nota: este texto (que também dá nome ao livro) compõe-se de um conjunto de pequenos textos (perto de uma centena), por vezes uma única frase. Resolvi pôr aqui estes onze.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

 Luísa Brehm - não se pode escrever o mar


Aqui fica um texto, sem título, da escritora portuguesa Luísa Brehm (n. 1957), retirado do livro «Da Melancolia», publicado em 1987.








Por entre as algas submergem encantadas as gaivotas nas vagas frias e cremosas, atentas, silenciosas, que esperam? para onde fitam os olhos laterais? fecham-se as pupilas do tempo. levanta-se o voo à mais pequena miragem. na névoa do sonho transforma-se a paisagem. apaga-se tudo com um simples gesto. ou com um bater de asa. 
não se pode escrever o mar.




LUÍSA BREHM, Da Melancolia

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 Earth Drive - "Stellar Drone" (2017)



1.Lactomeda (01:49)
2.Known by the Ancients (07:01)
3.Dead Blood for the Royal Weather (07:14)
4.Two Temple Place (09:36)
5.Stellar Drone (10:59)
6.Are we Drowning in Digits (06:13)
7.Magical Train (05:00)


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Há neste abismo uma estrela a morrer
Há um cometa vibrante que rompe as sombras
Há um saber antigo que nos foge
São memórias desvanecidas em cinza




HENRIQUE RISQUES PEREIRA, do livro «Transparência do Tempo»




terça-feira, 3 de novembro de 2020


LABIRINTO


Ia com a cabeça direcionada para o chão, como sempre, e tudo ia como esperado, quando alguém repentinamente parou à frente dele. Ele tentou contornar essa pessoa sem nunca tirar os olhos do chão, mas quando se movia para isso a pessoa movia-se também na sua direção e não o deixava passar. Pediu licença para passar também com os olhos no chão mas também não adiantou. Pressentiu o pior. Alguém que o conhecia tinha-se posto à frente dele só para o chatear e agora teria de pôr os olhos na cara dessa pessoa se queria prosseguir. E, pior ainda, teria de estabelecer uma indesejada conversa, parecer bem disposto, falar pelo menos algumas palavras que agradassem àquela pessoa que não saía da frente. Levantou então os olhos na direção da cara da pessoa. À sua frente estava o Minotauro.



Miguelsalgado, vidro duplo

terça-feira, 29 de setembro de 2020

 "Baran" - Majid Majidi (2001)





«Em 1979 a União Soviética invadiu o Afeganistão. Quando os soviéticos se retiraram 10 anos depois, o país tinha-se tornado uma sombra do que fora.

A devastação aliada a uma guerra civil, o domínio brutal do regime talibã e três anos de seca, levaram milhões de afegãos a fugir do país.

A ONU calcula que o lrão acolhe hoje 1,5 milhões de refugiados afegãos. Grande parte da nova geração nasceu lá e nunca esteve no seu país.»



 (texto retirado da introdução do filme)

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

 

ESFORÇO


Fizeram um acordo. O primeiro deles a morrer regressaria para contar o que tinha visto. Um deles depois perguntou: e se depois de mortos não virmos nada? achas que devemos regressar para contar que não vimos nada? Mesmo que não haja nada para ver depois da morte eu, pelo menos, vou fazer um esforço para regressar. E acho que tu devias fazer o mesmo. E ficaram assim combinados. Cada um deveria fazer um esforço. Mesmo que na morte não houvesse nada para ver.


                                                                                                                         

                                                                                               Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Dornenreich - "II", "III" e "VI"


Os títulos acima são 3 temas da banda austríaca Dornenreich. Fazem parte do álbum «Durch Den Traum» (2006)








Foi andando ao acaso.
Passou um bosque.
O tempo enevoado deixou-o
vaguear. Não era necessário
dirigir-se para coisa alguma.
Foi andando ao acaso
perdia-se pelos campos
pela água da noite.




JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE, O Regresso Dos Remadores








terça-feira, 2 de junho de 2020

Eva Christina Zeller - "Sigo a Água" (1996)






Escritora nascida em 1960, em Ulm, Alemanha, Eva Christina Zeller publicou o seu primeiro livro em 1981, tendo este, "Sigo a Água", saído originalmente em 1988 (com o título: Folg Ich Dem Wasser). Uma obra onde a morte e um quase omnipresente sentimento de desilusão e tristeza fluem inexoravelmente como as águas de um estige.



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No fim é a terra
a pôr-te a mão em cima
com flores e laços
e para isso o caixote
para que não fujas
para o céu para o azul
por baixo de ti
ou para dentro da erva
dentro do caixote
ficas apertado
e só

onde está o caixote para dois
como as camas duplas
os olhares
os clamores dia após dia
até ao fim
o casamento de preto
e as flores
espalham-nas atrás de ti
depois de ti na cova 
quando a terra te
põe a mão em cima



EVA CHRISTINA ZELLER, Sigo a Água



(editora: relógio d`água)

sexta-feira, 6 de março de 2020

"Magical Girl" ("Rapariga Mágica") - Carlos Vermut (2014)



 
 
 
 
 
Qualquer chuva miudinha abala a casa
que resiste ao tufão
à tempestade;
qualquer frio penetra porta, muro, escada
e corrói a força das paredes
em estruturas de pedra bem assentes;
qualquer vento apaga a chama na lareira
onde a lenha se cansa de ser brasa
e onde a angústia das cinzas já habita.
 
Na casa, forte e frágil, vulnerável
onde o jogo da morte se exercita.
 

 
 
LUÍSA FREIRE, Ciclo de Cal

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Zemial - "Nykta" (2013)



1. Ancient Arcane Scrolls  (07:36)  
2. Eclipse  (06:40)  
3. Under Scythian Command  (02:55)  
4. In the Arms of Hades   (10:52)  
5. Breath of the Pestilence  (04:08) 
6. Deathspell  (04:01)  
7. The Small  (04:55)  
8. Pharos  (14:37)  
9. Out of the Cage   (04:32)


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Sempre para o centro da terra
onde os metais com sede
sonham devoradoramente
o sangue dos mineiros.


Queimando já a pele e os cabelos
nas combustões do enxofre, do granito,
desço alucinado
com pedra a ferver nos pulmões
e pedra em chamas a acender-me os gritos.


Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes.





CARLOS DE OLIVEIRA, Descida aos Infernos







quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

José Viale Moutinho - "Ocasos de iluminação variável" (2005)

 

 
 
Ocasos de iluminação variável perfeitamente escuros.
 
 
 
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4.
 
 
As casas sobrepõem-se, vazias, nos centros históricos
das cidades. As casas apodrecem, povoam-nas o medo,
ratazanas e os perdidos passos dos que andam
pelos quartos alugados, dos que deixam pelos cantos
seringas, elásticos e limões espremidos.
Mancebos de passagem, envolvem a cabeça perdida
em toalhas molhadas e escondem os braços picados.
 
As casas perdem os seus números, abandonadas,
silenciosas, escuras. Os infelizes gatos negros
atravessam as portas sem almofadas nem história.
As aranhas lançam as suas teias horas a fio e a voz
de  alguém desliza, inaudível, descomposta, feia, rude.
 

 
 
 
JOSÉ VIALE MOUTINHO, Ocasos de iluminação variável
 
 

 
 
(editora: Editora Ausência) 

sexta-feira, 29 de novembro de 2019



ABRAÇO


Houve alguém que entrou com os braços abertos e a pedir que o abraçassem. Houve então uma pessoa que respondeu ao pedido e abraçou-o. Alguém abraçou com força e não queria largar a pessoa. A pessoa começou a sentir-se sufocada e pediu ajuda. Duas pessoas responderam ao pedido e separaram-na de alguém. Alguém queria abraçar outra vez mas as pessoas empurraram-no para fora. Alguém abriu os braços e foi-se embora com eles abertos. A pessoa sufocada recompunha-se. As duas pessoas que a separaram de alguém ainda estavam perto dessa pessoa sufocada. Das que empurraram alguém para fora, uma já estava na posição inicial. As outras regressavam aos poucos.


 
Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 27 de setembro de 2019



OUTRA PERGUNTA 


Morrer triste é a coisa mais triste do mundo, disse. Devíamos morrer todos felizes. De preferência com um sorriso na cara, não acha? A pessoa ao lado, não sabendo o que dizer, não disse nada. E o assunto ficou por ali, sem uma resposta à pergunta.





Miguelsalgado , vidro duplo 

sexta-feira, 13 de setembro de 2019


ATRASO


Aquele que já escorregou num pavimento húmido saiu ontem de casa por volta da hora habitual e chegou 2 minutos atrasado ao trabalho por causa de um camião que ia particularmente devagar e o impediu, durante alguns quilómetros, de andar à velocidade habitual e chegar com a habitual antecedência de 5-10 minutos ao seu posto de trabalho. No entanto, apesar do atraso, ninguém lhe chamou a atenção. No fim, acabou por sair um pouco mais tarde do que os habituais 10-15 minutos, para poder assim compensar o atraso. Por esse motivo, mesmo tentando acelerar mais um pouco o automóvel, acabou por chegar mais tarde que o habitual a casa. Por isso, a mulher, que habitualmente chega sempre depois dele, acabou por chegar mais cedo do que ele. Foi um dia diferente.





Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 23 de agosto de 2019


VOZ


Veio pelas costas, tapou-lhe os olhos com as mãos e perguntou: quem é? Ele não reconheceu a voz e disse: não sei, quem é? Tens de acertar, disse-lhe a voz. Ele então começou a dizer nomes que lhe vinham à cabeça mas a resposta era sempre negativa. Estavam já há algum tempo naquilo quando ele disse: desisto. diz lá quem és? E a voz: tens de adivinhar. E ele: estou farto disto. Queria tirar as mãos da voz da frente dos olhos e não conseguia. Fazia toda a força que tinha para tirar aquelas mãos. E a voz: só quando acertares é que vais poder voltar a ver. Ele começava a desesperar. Debatia-se, suava muito, e as mãos sempre à frente dos olhos, sempre a deixá-lo na escuridão. Na realidade, não só não via, como também não conseguia sair do sítio. Chorava. Berrava: quem é que não me deixa ver nem andar? Implorava: deixa-me ver deixa-me sair daqui. Aos poucos foi-se conformando e já estava bem mais calmo quando finalmente disse: é a Morte. Mas tinha-se enganado outra vez.

 
 
 
 
Miguelsalgado, vidro duplo

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Miguelsalgado - "vidro duplo" (2019)


 
 
 
 
 
SEMENTES
 

De cada vez que deitava as sementes uma boca vinda do interior da terra abria-se e devorava-as. A meio do percurso apercebeu-se disso. Atirou as sementes e no momento em que a boca emergiu lançou uma corda à volta do pescoço da boca e puxou. A criatura saiu toda da terra. Era um homem nu e esquelético, que começou a correr assustado, mas que não foi longe, porque não tinha olhos. O homem das sementes recomeçou o trabalho sabendo que até aí o seu esforço fora em vão.
 
 
 
 
 
(Editora: artelogy)

terça-feira, 16 de julho de 2019

Dreams of Sanity - "Komodia II – The Dream", "Komodia III - The Meeting" e "Time to set the stones"



Os 3 títulos acima correspondem a tantas composições da banda austríaca Dreams of Sanity. As duas primeiras pertencem ao álbum «Komodia» (1997) e a última ao álbum «The Game» (2000).










Dormi um sono profundo,
Acordei numa longa manhã,
Recordei cada sonho
Como se fosse real:
À beira de lagos espelhava-se
Um céu roxo, verde azul branco
Um céu com estrelas
Um céu profundo
De que eu era mandatário
Aqui na terra.
E, como se fosse real,
Cada sonho deixava-me
Cansado de o relembrar
Exausto de o viver
Prostrado ser eu
Nesse sono de cem dias
E de cem noites




MIGUEL BRANDÃO, Maré de Luz… Ressaca Rara